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domingo, 5 de março de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire

LI - O gato

I

Dentro em meu cérebro se move,
Tal como no seu próprio lar,
Belo gato, forte, exemplar.
Quando ele mia, mal se ouve,

Tão meigo e discreto é seu tom;
Mas que sua voz ralhe ou agrade,
Tem riqueza e profundidade:
É o seu segredo e sedução.

Essa voz que orvalha e se infiltra
No meu imo mais tenebroso
Enche-me, verme numeroso,
E me alegra como um filtro.

Ela acalma as mais cruéis doenças,
E os êxtases todos contém;
E pra dizer longas sentenças,
Mister de palavras não tem.

Não, arco nenhum há que morda
Meu coração, fiel instrumento,
E faça mais regiamente
Cantar sua mais vibrante corda,

Que tua voz, gato misterioso,
Gato seráfico e estranho,
Em quem tudo é, como em anjo,
Tão sutil, tão harmonioso!

II

De sua pelagem loira e bruna
Odor tão suave se desprende
Que fiquei cheiroso somente
Por afagá-lo uma vez, uma.

É espírito que a casa invade;
Julga, preside e leva a sério
Cada coisa do seu império,
Quem sabe é fada ou divindade?

Quando o gato que amo, a esmo,
Como um imã puxa-me o olhar,
Fazendo-o insensível voltar
E eu olho dentro de mim mesmo,

Percebo deslumbrantemente
O fogo de suas íris pálidas
Claros fanais, vivas opalas
Que me contemplam fixamente.


BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

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