XLV - Confissão
Uma vez, uma só, meiga e doce mulher,
O vosso braço ao braço meu
Se apoiou (e no fundo escuro do meu ser
Essa lembrança não morreu);
Era tarde; assim como um broche luzidio
A lua cheia se espalhava,
E essa pompa da noite, como um grande rio
Paris já dormente inundava.
E, ao longo das mansões, que escancaram portões,
Iam gatos furtivamente,
Orelhas a espreitar, ou, sombrias visões,
Seguiam-nos bem lentamente.
Subitamente, em meio à intimidade livre
Aberta à frouxa claridade,
De vós, rico e sonoro instrumento onde vibra
Só a radiante hilaridade,
De vós, clara e alegre tal como fanfarra
Na manhã toda faiscante,
Uma nota chorosa, uma nota bizarra
Escapou, cambaleante
Como um ser muito fraco, feio, escuro, imundo,
De que a família se pejava
E que, por muito tempo, afastado do mundo,
Em negro porão ocultava.
Pobre anjo, ela cantava, em tom esganiçado:
"Como no mundo tudo é engano,
E sempre, por mais que ele esteja disfarçado,
Se trai o egoísmo humano;
Como é dura a tarefa da mulher bonita,
E que trabalho tão banal
É o da louca, da fria dançarina que agita
O seu sorriso maquinal;
Como é tolo construir algo nos corações;
Tudo desaba, amor, beleza,
Até que o Olvido os lance em seus cestões
E os devolva à Eternidade!".
Evoquei vezes mil esta lua encantada,
Este silêncio e este langor,
E a confidência horrível cochichada
Do coração ao confessor.
BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.
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