XLIV - Reversibilidade
Anjo pleno de ardor, conheceis vós o enfado,
Por vergonha ou remorso, por ais ou açoites,
E esses vagos terrores, pavorosas noites
Que o peito apertam como um papel amassado?
Anjo pleno de ardor, conheceis vós o enfado?
Anjo pleno de amor, conheceis vós a ira,
Mãos crispadas na sombra e lágrimas de fel,
Quando a vingança bate o apelo cruel,
E faz de nossas mentes sua capitania?
Anjo pleno de amor, conheceis vós a ira?
Anjo de pleno vigor, conheceis vós as Febres,
Que ao longo das paredes do hospital nefando,
Como exilados vão os seus pés arrastando,
Os lábios a mover e o sol raro buscando?
Anjo em pleno vigor, conheceis vós as Febres?
Anjo em plena beleza, as fundas rugas vedes,
E o medo da velhice, e a mais triste aflição
De ler o horror secreto da dedicação
Nos olhos onde há tempo matamos a sede?
Anjo em plena beleza, as fundas rugas vedes?
Anjo em pleno gozar de luz e de alegria,
Davi sua saúde, morrendo, ia pedir¹
Aos eflúvios que o vosso corpo desprendia
Mas de vós só orações, anjo, eu pediria,
Anjo em pleno gozar de luz e de alegria!
BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.
¹ "Davi sua saúde, morrendo, ia pedir": alusão a passagem bíblica em que os servos do já bastante velho Davi trazem uma jovem para que esta o aqueça, dormindo ao seu lado. (N. do E.)
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