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domingo, 12 de fevereiro de 2017

Uma carniça - Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

XXIX - Uma carniça

Lembrai-vos, ó minha alma, do objeto à vista,
Naquele belo dia de verão:
À beira de um caminho, a nojenta carniça
Nos calhaus semeados no chão,

Qual lúbrica mulher, de pernas para o ar,
Ardente e a suar o veneno,
Abria de maneira cínica e vulgar
Seu ventre e exalações pleno.

O céu lançava os raios sobre essa impureza
Como para assim cozinhar
E ao cêntuplo volver à grande Natureza
Tudo que pudera juntar;

E ali o céu contemplava a carcaça soberba
Como uma flor desabrochar.
Era tão forte o fedor que sobre a relva
Acháveis que íeis desmaiar.

Zumbiam moscas mil sobre o pútrido ventre
De onde saíam batalhões
De larvas como espesso líquido vertente
Ao longo desses vivos aleijões.

Tudo isso descia e subia qual vaga,
Ou se lançava cintilando;
Dir-se-ia que o corpo cheio de ânsia vaga
Vivia em se multiplicando.

E esse mundo emitia música esquisita.
Como a água corrente e o vento,
Ou o grão que o joeireiro no compasso agita
E revolve num ritmo lento.

As formas se apagavam, apenas se imagina,
Um esboço lento a chegar,
Sobre a tela esquecida e que o artista termina
Simplesmente por se lembrar.

Uma cadela inquieta por trás do rochedo,
Lança um olhar desenxabido,
Espiando a hora de pegar esse esqueleto
O seu pedaço já lambido.

- No entanto vós sereis igual a essa feiura,
A essa horrível infecção,
Estrela dos meus olhos, sol meu da natura,
Vós, meu anjo e minha paixão.

Sim! Tal sereis um dia, ó rainha das graças,
Depois da santa extrema-unção,
Quando fordes, debaixo dessas relvas grassas,
Mofar de ossadas no montão.

Então, ao verme ide dizer, beleza minha!
Quem vai de beijos vos comer,
Que preservei a forma e a essência divina
De amores a se desfazer!

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

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