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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Um fantasma - Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

XXXVIII - Um fantasma

I - As trevas

Nos porões de tristeza insuspeitada
Onde o Destino já me relegou,
Onde nunca entra um raio cor rosada,
Onde a Noite, hospedeira malfadada,

Sou qual pintor a que algum Deus zombeteiro
Condena a pintar quadro, o mais horrendo,
Onde, a apetites fúnebres cozendo,
Meu coração eu fervo e como inteiro,

Por instantes reluz, longo, ao redor
Um espectro de graça e de esplendor,
Ao jeito seu sonhador oriental,

Ao atingir seu tamanho total,
Revejo a minha bela visitante:
É Ela! Toda negra, mas brilhante.

II - O perfume

Leitor, já tens acaso respirado,
Com uma gulodice lenta e grave,
O grão de incenso que preenche a nave
Ou o almíscar, em saco, inveterado?

Encanto fundo, mágico, a inebriar,
No presente o antanho restaurado!
O amante, assim, sobre um corpo adorado,
Do recordar colhe uma flor sem par.

De seu cabelo solto e balouçante,
Subia odor agreste e alucinante,
Vivo sachê, turíbulo de alcova,

E da roupa, veludo ou musselina,
Sempre guardando o cheiro de menina,
Emanava um odor de pele nova.

III - A moldura

Como bela moldura destaca a pintura,
Mesmo que seja esta de um pincel cotado,
Um não sei quê de estranho e mesmo de encantado
Ao mantê-la isolada da imensa natura,

Assim as joias, móveis, ouros ou metais,
Ajustavam-se a sua tão rara beleza;
Nada lhe ofuscaria a perfeita clareza,
Parecendo servir de quadros naturais.

Até mesmo diria, às vezes, que ela achava
Que aquilo tudo era amor, ela afogava
A nudez da volúpia daquele momento,

Nos beijos dos lençóis de um alvo e puro linho,
E, lenta ou bruscamente, a cada movimento
Tinha aquele infantil jeito de um macaquinho.

*V - O retrato

Doença e Morte cinzas de repente
Fazem do fogo que por nós flambou,
Dos grandes olhos tão ternos, ferventes,
Da boca em que minha alma se afogou,

Desses beijos qual ditame potente,
Dos transportes mais vivos do que os raios,
Que resta? Ó alma minha, é deprimente!
Nada mais que um rascunho ou que ensaios,

Que, como eu, morrem na solidão,
E em que o Tempo, injuriosos ancião,
Dia a dia faz com a asa algum desgaste...

Negro assassino da Vida e da Arte,
Jamais hás de matar-me na memória
Aquela que me foi prazer e glória.

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

*Há a possibilidade de ser um erro de digitação ou foi intencional pelo autor.

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