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quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

VI - Os faróis

Rubens¹ rio de olvido, jardim da preguiça,
Coxim de carne fresca impossível de amar,
Mas onde a vida aflui e sempre rebuliça,
Como o ar pelo céu e o mar pelo mar;

Leonardo da Vinci², fundo e escuro espelho,
Onde anjos encantados, a sorrir gentis
Repletos de mistério, em sombras deixam vê-los
Em geleiras, pinhais que fecham seu país;

Rembrandt³, triste hospital repleto de murmúrios,
E com um crucifíxo a orná-lo simplesmente,
Onde a oração em pranto exala dos monturos,
E de um raio de inverno cruzado bruscamente;

Miguel Ângelo4, vago onde Hércules se veem
Mesclaram-se a Cristos, e se erguerem eretos
Poderosos fantasmas que à meia-luz vêm
Rasgar os seus sudários estirando os dedos;

Impudências de fauno, iras de lutador,
Tu que juntar soubeste o brilho do garoto,
Coração só de orgulho, homem débil, sem cor,
Puget5, sombrio rei dos forçados do porto;

Watteau6, o carnaval ou corações ilustre,
Iguais a borboletas, vagam a faiscar,
Cenários frescos, leves, banhados por lustres
Que derramam loucura a esse baile a girar;

Goya7, mau sonho, coisas não sabidas,
No meio dos sabás fetos cozinhando,
Velhas diante do espelho e crianças despidas,
Para os demos tentar as meias ajustando;

Delacoix 8, mar de sangue cheios de maus anjos,
Sombreado por bosque e por verdes pinhais,
Onde um céu de amargor e músicos estranhos
Passam como de Weber 9 mal contidos ais;

Essas queixas, blasfêmias, essas maldições,
Esses êxtases, gritos, prantos, os Te Deum 10,
São eco repetido em perdidos rincões,
E para corações mortais, divino opium!

É grito repetido por mil sentinelas!
É por mil porta-vozes ordem replicada;
É acendido farol sobre mil cidadelas,
De caçador apelo na mata fechada!

Pois é mesmo, Senhor, o melhor atestado
Que nós possamos dar da nossa dignidade
Que esse ardente soluço a rolar no passado,
Venha morrer bem rente à vossa eternidade!


BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

¹Peter Paul Rubens (1577-1640), pintor flamengo de estética barroca. (N. do E.)
²Leonardo da Vinci (1452-1519) foi um polímato italiano, que se destacou nas ciências e nas artes. É considerado um dos maiores expoentes do Renascimento e um dos maiores pintores de todos os tempos. (N. do E.)
³Rembrandt Harmenszoon van Rijin (1606-1669), pintor holandês de estética barroca. (N. do E.)
4Michelangelo (outra grafia: Miguel Ângelo) di Lodovico Buonarroti Simoni (1475-1564), arquiteto, escultor e pintor italiano. (N. do E.)
5Pierri Puget (1620-1694), escultor francês de estética barroca. (N. do E.)
6Jean-Antoine Watteau (1684-1721), pintor francês de estética rococó. (N. do E.)
7Francisco José de Goya y Lucientes (1726-1828), pintor e gravador espanhol. (N. do E.)
8Ferdinand-Victor Eugène Delacoix (1798-1863), pintor francês do Romantismo. (N. do E.)
9Carl Maria Friedrich Ernest von Weber (1786-1826), músico alemão, teórico do Romantismo, compositor da primeira ópera romântica alemã, Der Freischutz. (N. do E.)
10 Te Deum: hino litúrgico da igreja católica; a primeira linha completa é Te Deum Laudamus ("A Vós, Deus, louvamos"). O nome passou a designar também a cerimônia que acompanha essa ação de graças. (N. do E.)

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