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quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire

I - Benção

Quando por decisão das potências supremas,
Vem o poeta a este mundo, enfastiado,
Sua mãe espantada e cheia de blasfêmias
Crispa o punho a Deus, que poe ela é tocado.

- Ah! por que não pari um rolo de serpentes,
Em vez de dar a luz tamanha derrisão!
Maldita seja a noite em gozo inconsequente
Quando gerou meu ventre a minha expiação!

Posto que me escolheste entre mulheres tantas
Para servir de opróbrio ao meu triste marido,
E que lançar não posso simplesmente às chamas,
Qual bilhete de amor, o monstro ressequido,

Farei jorrar tua ira em que estou oprimida
Sobre o instrumento mau dos teus atos malvados
E vou torcer tão forte essa árvore maldita
Que não mais nascerão seus brotos empesteados!

Ela volta a engolir da ira o caldo imundo,
E, como não entende os desígnios eternos,
Ela mesma prepara da Geena¹ ao fundo
As fogueiras votadas aos crimes maternos.

Entretanto, por Anjo invisível guardado,
O Filho deserdado de sol se embriaga,
E encontra a ambrosia e o néctar dourado
Em tudo o que ele come, e em tudo que ele traga,

Com a nuvem conversa e brinca com o vento,
Em meio à via sacra a cantar se inebria;
E o Espírito que o segue a seu vagar atento
Sofre de o ver cantar qual pássaro à porfia.

Todos que quer amar observam-no com medo,
Ou se valendo então de sua tranquilidade,
Disputam para ver quem lhe arranca um lamento
E experimentam nele a sua ferocidade.

Naquele vinho e pão que irão à sua boca
Misturam cinza junto aos impuros escarros:
Com muita hipocrisia lançam o que toca,
E se acusam por ter postos os pés em seus passos.

Sua mulher gritando o segue pelas praças:
Já que ele me acha bela e que mesmo me adora,
O serviço eu farei das antigas devassas,
Assim como elas quero algum enfeite agora.

E me embriagarei de nardo, incenso e mirra,
De mil genuflexões, de carnes e de vinhos,
Para ver se consigo em alguém que me admira
Usurpar a sorrir elogios divinos!

E quando me fartar dessas ímpias folias,
Pousarei sobre ele a forte e débil mão;
E as minhas unhas, como aquelas das harpias,
Acharão o caminho até seu coração.

Qual jovem passarinho a tremer que palpita,
Esse coração rubro arrancarei do peito.
E saciando essa minha besta favorita,
Vou atirá-lo ao chão com desdém, sem respeito!

Para o Céu, onde o seu olhar vê trono fúlgido,
O poeta sereno alça os olhos piedosos,
E esses vastos clarões do pensamento lúcido
Escondem-lhe a visão dos povos furiosos:

- Sê bendito, meu Deus, que dás o sofrimento
Qual divino remédio às impurezas tantas
E como o mais perfeito e o mais puro unguento
Que preparam o forte ás volúpias mais santas!

E sei que tu reservas lugas ao Poeta
Nas fileiras de escol das santas Legiões,
E que ele é convidado àquela eterna festa
Dos Tronos, das Virtudes, das Dominações.

Eu bem sei ser a dor a nobreza suprema
Que nunca morderão a terra e os infernos,
E que para tecer meu místico diadema
Hei que me impor ao tempo e aos universos eternos;

Mas as perdidas joias da antiga Palmira,
Os ignotos mentais, as pérolas do mar,
Por tua mão montados, nada bastaria
A esse diadema claro de ofuscar;

Pois ele será feito dessa luz primeira,
Vinda do santo lar dos raios primitivos,
De que os olhos mortais, em sua beleza inteira,
São apenas espelhos baços, cansativos!

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

¹Geena: Estada reservada aos rejeitados, inferno; dor extrema. (N. do E.)

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