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terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Spleen e Ideal - Charles Baudelaire.

V

Eu gosto de lembrar essas despidas eras,
De que Febo¹ em dourar as estátuas se esmera.
Então o homem e a mulher em sua agilidade
Gozavam sem mentira e sem ansiedade,
E, o amoroso céu a acariciar sua espinha,
O nobre corpo seu exercitando vinha.
Fértil, Cibele² então, em seus dons generosos,
Não achava seus filhos pesos onerosos,
Mas, loba, coração inchado de ternuras,
Aleitava o universo em suas tetas escuras.
O homem, elegante, audaz, tinha o direito
De orgulhar-se do que o rei havia feito;
Frutos sem um ultraje e sem bordas fendidas,
De pele lisa e firme a chamar as mordidas!

O poeta hoje em dia, ao querer conceber
As nativas grandezas, onde se pode ver
A nudeza do homem como a da mulher,
Sente um frio tenebroso a sua alma envolver
Diante do negro quadro repleto de espanto.
Ó monstruosidade a chorar por um manto!
Ó ridículos troncos! torsos mascarados!
Ó pobres corpos tortos, magricelos, flácidos
Que o deus do Útil foi que, implacável, sereno,
Com fraldas de latão envolveu em pequenos!
E vós, mulheres, pálidas qual fossem velas,
Que rói e nutre a orgia, e também vós, donzelas,
Que do vício materno a triste herança invade,
E todas as feiuras da fecundidade!

Nós temos, é verdade, nações corrompidas,
Belezas dos antigos povos não sabidas:
Rostos roídos pelos cânceres do cor,
E como - quem diria - as graças do langor;
Mas essas invenções das musas já tardias
Jamais impedirão as raças doentias
De aos jovens prestar homenagem eterna,
À santa juventude, as simples, fronte amena,
Olhar límpido e claro como a água corrente,
E que vai espalhando em tudo, displicente
Como azul do céu, os pássaros e as flores,
Seus perfumes, canções e os mais doces calores!


BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

¹Febo: ("luminoso") é o deus que personifica a luz, a música, a beleza, da mitologia romana, filho de Júpiter e Latona. (N. do E.)
²Cibele é uma deusa originária da Frígia, mas também associada à "Deusa-Mãe" minoica, remontando, nesse caso, ao período neolítico. Seu culto espalhou-se pela Grécia e por Roma, tendo sido mencionado por Virgílio, Catulo, Lucrécio e Ovídio. (N. do E.)

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