LXXXIV - O irremediável
I
Uma Ideia, uma Forma, um Ser
Saído do azul e descendo
Num Estige plúmbeo e barrento
Onde o olho do Céu não vai ver;
Um Anjo, incauto viajor
Que tentou o amor do disforme,
Dentro de pesadelo enorme
A se agitar qual nadador,
Em fúnebre angústia lutando!
Contra remoinho gigantesco
Que vai em um canto dantesco
E nas trevas piruetando;
Um pobre infeliz se seduz
Em seus palpares hesitantes,
Pra fugir dos seres rampantes,
Procurando a chave e a luz;
Um danado a descer sem lâmpada,
À beira de abismo de odor
Que trai profundeza e vapor,
De eternas escadas sem rampa,
Onde velejam monstros viscosos
Cuja fosfórea grande vista
Faz noite, a mais negra que exista,
E a eles só tornam vistosos.
Um navio no polo preso,
Como armadilha de cristal,
Buscando em que estreito fatal
Naquela jaula foi surpreso;
- Lemas claros, quadro perfeito
De um destino já prefixado,
Que dá a pensar que o Diabo
Tudo que faz, faz bem feito!
II
Aconchego limpo e sombrio
Coração que espelho se faz!
Poço em Verdade, atroz e fugaz,
Onde treme astro luzidio,
Fanal irônico, infernal,
Das graças satânicas fogo
Única glória e desafogo,
- A consciência no Mal.
BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.
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