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sábado, 15 de abril de 2017

Quadros Parisienses - Charles Baudelaire

LXXXIX - O cisne

A Victor Hugo

I

Andrômaca¹, em vós penso! Esse rio de água turva
Desse simples espelho onde já resplendeu
A imensa majestade da dor de viúva,
O Simeonte mendaz que dos prantos se encheu,

Súbito fecundou minha fértil memória,
Quando eu atravessava o novo Carrossel²,
A antiga Paris já não há (pois a história
Da cidade muda antes que a alma de um mortal);

Em espírito vejo esse campo de tendas,
Tantas colunas, tantos capitéis pintados
Os matos, grandes blocos, poças verdoengas,
E, brilhando no chão, objetos espalhados.

Por ali se espalhava outrora um galinheiro;
Ali eu vi, um dia, na hora em que no céu
Frio e claro o Trabalho desperta, e em que o cheiro
Do lixo enche o ar como sombrio véu,

Um cisne que escapara de seu cativeiro
E, com os pés palmados esfregava no chão
Sua branca plumagem, chegou a um ribeiro
Cujo leito era seco, e, abrindo o bico, então,

Na poeira aflitamente as asas a banhar,
E dizia, saudoso do lago natal:
"Água, vais chover quando? Raio, vais troar?".
Eu vejo esse infeliz, mito estranho e fatal,

Como o homem de Ovídio², pra o céu arremessa,
Para o irônico céu azul na vastidão,
No colo convulsivo dando a ávida cabeça,
Como se a Deus lançasse sua reprovação!

II

Paris muda! Mas nada na melancolia
Se alterou! Paços novos, andaimes e obras,
Velhos bairros, pra mim é tudo alegoria,
E as recordações pesam mais do que rochas.

Assim, diante do Louvre, uma imagem me oprime:
Penso no grande cisne e seus gestos sem jeito,
Tal como os exilados, grotesco e sublime,
E roído de anseio sem trégua! Então feito

Andrômaca, dos braços do esposo caída,
Besta vil, sob a mão de Pirro, nada ameno,
Ao lado de uma tumba vazia estendida;
Viúva de Heitor, oh! e mulher de Heleno!

Fico a pensar na negra, emagrecida e flácida,
Patinando na lama e a buscar, louco olhar,
Os coqueiros ausentes da soberba África
Por detrás da muralha branca e secular,

A quem quer que perdeu o que jamais se encontra,
Nunca, nunca! Pra quem só bebe dissabores
E vão mamar na Dor como uma boa loba4!
Aos magérrimos órfãos a secar quais flores!

Assim na mata em que a minha alma se asila
Uma velha lembrança soa qual clarim!
Eu penso nos marujos perdidos numa ilha,
Nos cativos, vencidos!...e outros mais assim!

BAUDELAIRE, Charles. Flores do Mal. Tradução de Mario Laranjeira. 2ª Reimpressão. Editora Martin Claret. São Paulo, 2014.

¹Andrômaca é a viúva de Heitor, o príncipe troiano morto por Aquiles na Guerra de Troia. (N. do E.)
²Alusão às reformas urbanas determinadas por Napoleão III e empreendidas pelo Barão Haussmann ("o artista demolidor") entre 1853 e 1870. (N. do E.)
³Públio Ovídio Naso (43 a.C. -17 d. C.), poeta romano, autor de As metamorfoses, obra que foi traduzida por Baudelaire. (N. do E.)
4A boa loba amamentou os gêmeos Rômulo e Remo, heróis fundadores de Roma, segundo a tradição. (N. do E.)

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